Memórias de um 1º de abril


Era 1º de abril de 1964, e eu tinha apenas oito anos de idade. Naquela manhã o meu pai me levou pra passear no seu Simca Chambord pelas ruas desertas da cidade. Lembro que tinham montado barricadas na frente do 8º Regimento de Cavalaria e que quase ninguém havia saído de casa. Meses mais tarde, eu já estava desfilando com um uniforme militar e cantando o Hino Nacional na entrada do Grupo Escolar Rivadávia Corrêa. 

Na verdade, até 1973 eu não acompanhava o que estava acontecendo no meu país. Morando na fronteira Brasil-Uruguai, dava para aproveitar os últimos ares democráticos que ainda sopravam do lado de lá. Pois atravessando a linha imaginária eu conseguia assistir a filmes censurados e comprava livros que estavam proibidos no Brasil. Acho que isso diminuía um pouco a minha inquietação juvenil.

Vladimir Herzog - 1975
Confesso que, até 1975, eu não entendia bem o que significava viver sob uma ditadura militar. Acordei de vez quando os principais jornais da época anunciaram que o jornalista Vladimir Herzog havia se enforcado com uma tira de pano, amarrada a uma grade a menos de dois metros de altura. Eu já tinha 19 anos e a foto mostrava os pés do jornalista tocando o chão, com os joelhos dobrados.  Alguns meses depois, na porta de uma fábrica, o líder sindical Santo Dias foi morto ao tentar dialogar com os policiais para libertar os companheiros presos. A polícia agiu com brutalidade, e um PM atirou nele pelas costas. O corpo do operário morto só não desapareceu porque a sua companheira entrou no carro que transportava o  corpo para o Instituto Médico Legal.

Assim, aos poucos, através da imprensa alternativa da época e dos meus amigos, foram se revelando as matanças, as torturas e toda a corrupção que transbordava em quase todas as áreas. Também descobri que para isso acontecer eles precisavam do apoio da grande mídia e da máquina judiciária, divulgando informações falsas sobre aqueles verdadeiros crimes. Durante anos eu assisti confissões forjadas, laudos periciais mentirosos, autópsias fraudadas, queima de bancas de jornais e o desaparecimento de pessoas inocentes, após longas sessões de torturas. Com a grande mídia ao seu lado, alguns empresários internacionais, via governo dos EUA, compraram vários empresários brasileiros, alguns políticos e boa parte da alta patente do exército. Depois, utilizando intrigas e mentiras, foram desmantelando a universidade brasileira (ver acordo MEC-USAID), manipulando e dividindo a sociedade civil, e assim conseguiram apoio para os seus investimentos no país. Eles queriam a nossa mão-de-obra barata e a exportação das nossas riquezas naturais.

Roberto Marinho com os generais
e com Antonio Carlos Magalhães
Entre os casos de corrupção, eu lembro da Operação Capemi (Caixa de Pecúlio dos Militares), em que esta “organização” ganhou uma concorrência suspeita para a exploração de madeira no Pará, dos desvios de verbas na construção da ponte Rio–Niterói, da construção da Usina de Itaipú e da inacabada Rodovia Transamazônica. O General Golbery do Couto e Silva, por exemplo, um dos principais articuladores do golpe militar e das suas estratégias, também foi presidente da filial brasileira da empresa norte-americana Dow Chemical e, posteriormente, seu presidente para a América do Sul. Como calar diante disso tudo?

Naquela época, apesar da minha indignação, eu quase não tinha com quem conversar sobre estes assuntos em casa. Os meus pais, com medo de alguma represália, me pediam para não me meter na política. A minha mãe às vezes me falava do penteado que a Dona Dulce Figueiredo usava, e eu ficava &%*&¨¨%%$+_)( da cara.

Mesmo sem liberdade de expressão, fui me dando conta de que aquele modelo pregava abertamente o crescimento a qualquer custo, expulsando os homens do campo, acabando com as reservas indígenas, criando enormes cinturões de miséria nas grandes cidades e explorando os trabalhadores. Para garantir tudo isso, o congresso foi esvaziado de seu significado público, e criaram-se privilégios em todas as esferas de poder (municipal, estadual e federal), com a apropriação privada do que deveria ser público. As cidades de fronteira e as capitais dos estados (UFs) foram consideradas Áreas de Segurança Nacional e não tinham o direito de eleger os seus prefeitos e nem os seus escalões administrativos. Os governadores também eram indicados pelos ditadores, e os estados menores, como o Acre e o Amapá, à medida que a oposição avançava nos demais estados, ganharam o mesmo peso de representação no Senado, para garantir uma nova maioria. Essa e outras manobras políticas, os defensores do regime militar brasileiro nos deixaram como herança.

Quem viveu naquela época sabe que os ditadores se utilizaram da prática de tortura de uma forma institucionalizada. E que algumas dessas práticas ainda persistem em delegacias e prisões do nosso país. Aquele regime de força acabou promovendo, gratificando e dando garantias aos integrantes do aparelho de repressão política, como a anistia aos torturadores e o emblemático caso da homenagem ao delegado torturador Fleury, com a concessão da Medalha do Pacificador.

É notório que neste poucos anos de democracia e de liberdade conquistada, muitas pessoas estão aprendendo a conviver e a dialogar com as diferenças. A nossa paciência, aliada ao trabalho de base, com argumentos consistentes, foram desmanchando muito daquela velha onda reacionária e conservadora. 

Faz tempo que eu estou convencido de que o combate à corrupção passa pela luta por mais participação e por mais democracia. Ou seja, quanto mais informações e controle social, menos corrupção e menos autoritarismos... 
Editorial do jornal O Globo - ano 2013
Por isso, o dia 1º de abril deve ser um dia de memórias e de reflexões para nós... Ainda mais que alguns fantasmas insistem em propagar intrigas, mentiras e fazem uma verdadeira tortura psicológica nas Redes Sociais, apesar de tudo o que já foi revelado.

Uruguai: um lugar especial nas minhas memórias

    Era final dos anos 60: época dos Beatles, Rolling Stones, Che Guevara, Woodstock, Jimmy Hendrix, Janis Joplin e tantos outros. Ouvia-se falar na Guerra do Vietnã, mas eu não sabia que havia revoltas na França e nem imaginava que o Jean Paul Sartre e a Simone de Beauvoir existiam. Também não sentia falta da democracia pois eu me deixava "embebedar" pelos ares democráticos que sopravam lá do lado do Uruguai, onde se podia viver de um modo mais livre e espontâneo.

    Como Demian, do Herman Hesse, eu recém estava reconhecendo o mundo fora de casa. A rua e o cinema me revelavam a existência de novas paragens, novos olhares e muitas outras culturas diferentes da minha. Assim, e por morar naquela fronteira, acabei assistindo a vários filmes que não podiam passar no Brasil em função da censura durante o regime militar, como: Z, Sacco e Vanzetti, Mimi – o Metalúrgico, A Classe Operária vai ao Paraíso, O Fantasma da Liberdade, Zabriskie Point, Teorema, Amarcord, Decameron, Um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita, Easy Rider, A Laranja Mecânica, Tommy e O Último Tango em Paris. Além do mais, no Brasil daqueles tempos sombrios, quase todo o filme era cortado e/ou proibido para menores de 18 anos.

    Foi nesse contexto que eu também conheci a noite nas mesas dos bares da Sarandi e dos bairros mais afastados, onde era comum encontrar amigos(as) para analisar aqueles belos filmes. Assim, aos poucos foram surgindo  reflexões sobre as diferentes formas de repressão, das sexualidades, e se debatia sobre as injustiças humanas. Assim, a minha geração teve a oportunidade de lutar por justiça, elevar os seus sentidos e abrir as portas da imaginação para o infinito. 

    É preciso lembrar que esses filmes somente passaram no Brasil depois da grande crise mundial do petróleo, de 1972, e, principalmente, após o fim do regime autoritário, em 1985. Um pouco antes, com o fim da censura e com a Lei da Anistia, em 1979, eles já começavam a passar nos cinemas que ainda não haviam se transformado em igrejas evangélicas. Os militares uruguaios deram o golpe em 1973 e tudo aquilo que nos alimentava foi desaparecendo ano a ano... No final dos 70 ainda era possível comprar LPs da Janis Joplin, do Jeferson Airplane e do Santana, na Casa América e no Peppo, assim como livros de arquitetura, do Sartre e do Ernesto Sábato, os quais eu guardo com muito carinho. 

    Hoje, eu reconheço que aquelas músicas e livros foram importantes na lapidação da minha sensibilidade cultural, mas aqueles filmes foram fundamentais na minha educação para a vida... E é por isso que eles merecem um lugar especial nas minhas memórias.

     Para celebrá-los, eu publico as lembranças de Federico Fellini, em Amarcord.