Um contador de histórias reais


Dagoberto e Noemy
Ao meu pai, Dagoberto D'Avila Almeida
in memorian


Filho de um tropeiro e de uma costureira, o jovem Dagoberto ficou órfão de pai quando ele tinha apenas 17 anos de idade. Como era o mais velho de cinco filhos, dizem que ele foi fundamental na educação e na formação dos seus irmãos. Eu me lembro dele nos domingos na piscina do Santa Rita, onde ele foi o sócio número 2, e dirigindo um Simca Chambord, um Esplanada, um Tufão, um Rally e um Itamaraty, que depois, bem mais tarde, descobri que aqueles carros também eram seus "negócios de ocasião”. 

Lembro também dele como um bom empreendedor, que sempre se orgulhava de ter comprado um escritório de contabilidade completo. Assim, nós fomos educados ao som daquelas velhas (à época eram modernas) máquinas Olivetti, Remington, Burroughs e Royal, que nos anos 80 foram aos poucos sendo substituídas por computadores.

Bem diferente da minha mãe, de quem herdei um prazer pela música e pelas artes, ele acabou me influenciando profundamente na análise crítica da sociedade. Como ele era um contador reconhecido na cidade, fazia a contabilidade e declaração de renda de aproximadamente 200 pessoas e empresas de Livramento. Por isso, tinha uma visão subterrânea dos negócios de famílias locais e costumava comentar algumas dessas histórias com os filhos na hora do almoço e do jantar.

Era comum escutar situações verídicas envolvendo as disputas por heranças, as preocupações que alguns fazendeiros tinham de dividir as terras entre os herdeiros, as dificuldades financeiras por que passavam determinadas famílias e também, é claro, das maracutaias que alguns empresários locais faziam para sonegar impostos ou passar as mercadorias para o outro lado da fronteira. Quase todos aqueles que chegaram na cidade nos anos 60, 70 e 80 procuravam o Dagoberto para se orientar. Também havia aqueles que, pegos pela fiscalização tributária, voltavam implorando por uma assessoria com uma certa urgência.

Eu assistia a tudo como um grande documentário e, junto com os meus irmãos, o desafiava seguidamente a escrever um livro de memórias, com a promessa de publicarmos somente dez ou quinze anos depois da sua morte. Lembro que ele começou a escrever duas ou três versões, mas disse que acabou queimando depois de ler os resultados.

O que terá escrito? Qual terá sido o motivo dessas desistências? Uma questão ética? Pensou nos empresários locais? Na minha mãe? Em nós? Até hoje não sei o que acabou pesando mais!

Hoje, no dia 18 de fevereiro ele estaria completando 86 anos de idade, e no mês de março completam os quinze anos do seu falecimento, então resolvi deixar registrado um novo agradecimento (in memorian), pois muitos eu fiz em vida, nas longas e gostosas conversas que tivemos ao redor de uma mesa.

Mas, o que quero dizer com tudo isso? Porque eu disse que acabei herdando uma capacidade de análise crítica da sociedade?  

A gente não consegue perceber toda a cultura herdada naturalmente dos nossos pais. É tão natural que os nossos olhos e ouvidos consideram tudo muito normal. Vejam se eu não tenho razão: além dos comentários, ele lia diariamente e conseguiu nos repassar de forma natural um prazer pela interpretação das notícias e também pela leitura das entrelinhas. Por outro lado, nós aproveitávamos todo aquele reconhecimento público dele para entrar livremente nos diferentes clubes da cidade. Assim, fomos convivendo com  diferentes situações e com diferentes classes sociais. Em alguns clubes a gente aprendeu que o segundo "escalão" sempre sentava afastado da pista de danças, mais perto do balcão do bar. Que os endividados disfarçavam muito bem e não demonstravam preocupação alguma ao se divertir. Que novos empreendedores chegavam aos poucos e iam tomando conta dos bailes, dos clubes e também da cidade. Para nós, cada baile era quase um reflexo daquela sociedade. 

      Certo dia ele me perguntou o que eu achava de uma manchete bombástica do jornal A Plateia e eu apontei para o imenso anúncio de primeira página do Frigorífico Armour. Ali selamos um tipo de pacto silencioso: é que ambos sabíamos ler as notícias dos jornais e da TV, considerando os interesses dos seus fiéis patrocinadores.

Saber disso tudo tem o seu lado bom, mas impõe certas precauções. Por conhecer muitos segredos contábeis familiares não era conveniente ele frequentar certas rodas da cidade. E assim, para manter os seus segredos, ele fumava três carteiras de Minister por dia. O seu prazer ficava na leitura, nas pescarias e nos programas de televisão. Bebia um uísque à tardinha, dormia cedo e acordava de madrugada, bem antes do primeiro galo cantar.

Quem conheceu o Dagoberto talvez entenda porque resolvi registrar essas pequenas recordações. Para quem não o conheceu, destaco que ele era um bom contador de histórias reais. Era maçom, com críticas profundas aos “aproveitadores” da maçonaria, e sabia hipnotizar com a sua Parker 51 – e até foi apelidado de “El Brujo” por alguns dos nossos amigos. Mas essas já são outras histórias...

Entender essas contradições dele me faz pegar um pouco mais leve com a vida. Ainda mais que a minha mãe sempre me dizia: - Saiba de tudo, mas não leva a vida tão a sério!

4 comentários:

  1. A gente não consegue perceber toda a cultura herdada naturalmente dos nossos pais. É tão natural que os nossos olhos e ouvidos consideram tudo muito normal. Hermoso relato de un hombre a quien no conocí, pero no tengo dudas de que dejó su huella. Seleccioné ese pedazo porque siempre consideré a mi padre un hombre muy rígido, tal vez antiguo, y hoy, frente a otras historias, lo valoro como un hombre progresista y virtuoso, "tarde piaste", como se dice por acá!!!!

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  2. Margarita, gostei do teu reconhecimento das "sombras" que nos acompanham por toda a vida e às vezes conseguimos conversar com elas pra não ficar preso ao passado. Seguimos com e sem elas... Gracias pela reflexão. Abraços

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  3. Ricardo, o Dagoberto Almeida, freguês do meu pai, mecânico Sebastião Canabarro, ia além dessa condição, entregar seus carros para o concerto, as maquinarias, caminhoneta e tratores do aviário, eles eram particularmente amigos. E meu pai tinha uma profunda admiração por Dagoberto Almeida. Tanto que ficávamos juntos na oficina ouvindo os dois a conversar. Parabéns pelo teu texto. Colocou-me frente a frente aquele homem que, com seu gordo motorista, sentado no banco do carona da Toyota Bandeirante azul, fumava dois cigarros antes de sair da oficina. Gostava mesmo de conversar.

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  4. Li a instrução depois de ter publicado o texto

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