O Tempo e os Novos Ventos

       O argentino José Hernandez morou nas cidades de Santana do Livramento e Buenos Aires e escreveu o épico Martín Fierro (1872) que retrata a peregrinação e as reflexões de um gaucho abandonado à própria sorte, entre guerras e conflitos. Simões Lopes Neto e Érico Veríssimo viveram nas cidades de Pelotas e Porto Alegre, respectivamente, e escreveram os Contos Gauchescos (1912) e O Continente (1949), obras que também fazem uma abordagem sobre as formação das primeiras vilas e cidades no pampa. Pela sua importância histórica e literária as obras desses homens urbanos e letrados são utilizadas por professores, artistas e intelectuais para representar a cultura gaúcha/gaucha.

      Fica uma pergunta: Por que será que a obra de Érico Veríssimo é sempre representada apenas pela primeira parte da trilogia O Tempo e o Vento? No livro O Continente (escrito em 1949), Veríssimo aborda as primeiras migrações no território, chamado na época de "Continente de São Pedro" (1745). Mas a saga das famílias Terra e Cambará continua nos outros dois volumes da trilogia: O Retrato (1951) e O Arquipélago (1961). Os personagens de O Tempo e o Vento são protagonistas das origens e da urbanização do Rio Grande, influenciaram a formação de uma visão republicana no Brasil e vão até o Estado Novo, de Getúlio Vargas (1945), quando a capital ainda era a cidade do Rio de janeiro. Portanto, nos três volumes, Veríssimo aborda algumas das muitas contribuições culturais rurais e urbanas do povo gaúcho na demarcação do território nacional e também na constituição da República Federativa do Brasil.


      Responder essa pergunta é uma tarefa difícil, pois requer a identificação dos mitos na formação da identidade cultural gaúcha. Além disso, exige uma separação do enfoque simbólico (mitos) das análises históricas (fatos), e evitar todo tipo de generalização. O reconhecimento da diversidade étnico-cultural que atualmente povoa a cidade e o campo do estado do Rio Grande do Sul e toda a região do Rio da Prata é uma questão complexa. A cultura “regional-nacionalista” que exercia um papel político importante para demarcar o território com os “castelhanos” perdeu parte de sua função original pois a região está muito mais urbanizada e globalizada do que anos atrás. As novas gerações dialogam naturalmente com os uruguaios, argentinos e com o mundo inteiro. Assim, alguns estereótipos criados por necessidades políticas da época, aos poucos, vão sendo substituídos por outras representações da nova realidade. 

             Um exemplo claro dessa diversidade cultural fica mais evidente na faixa de fronteira Brasil-Uruguai, uma região reconhecida pelas suas con-tradições e que conta com mais de um milhão de habitantes, sendo que quase noventa por cento das pessoas vivem nas cidades (dados IBGE/2010 e INE/2011). A grande maioria delas possui uma bicicleta, uma motocicleta ou um automóvel. Algumas dormem em colchões King Box e pilotam uma camionete Land Rover 4X4, equipada com computadores, para administrar os homens e as máquinas que trabalham no campo. Quase todos usam um celular e possuem um ou mais aparelhos de TV com antena parabólica em suas casas. Seus filhos navegam diariamente na internet, e quase todas as escolas estão equipadas com modernos computadores. 

      Mas, até os anos 70, essa fronteira era uma região com grandes frigoríficos ingleses e norte-americanos, que serviam para exportação de carnes e seus derivados. Durante os anos 60, 70 e início dos 80, a região foi considerada pelos governos militares como área de segurança nacional e, portanto era tratada como uma “área de conflito”. Por causa disso houve poucos investimentos nessas cidades. A partir dos anos 80, esse esquecimento foi sendo substituído por políticas nítidas da era (mais) globalizada e os empresários estrangeiros e  uruguaios abriram lojas que vendem perfumes franceses, whisky e vinhos importados, sem pagar impostos nacionais. Esse processo também mudou a paisagem urbana, pois foi acompanhada pela nítida destruição da memória arquitetônica que resistia naquelas cidades. O homem do campo segue plantando e criando gado em menor quantidade, e buscou outras alternativas, como a plantação de uvas e oliveiras. 

Neste contexto, o culto à tradição permanece misturado com os "castelhanos" mas também foram surgindo festivais binacionais de música popular e erudita, de cinema, de teatro, de camdombe, de jazz, as feiras binacionais do livro etc. Todos esses ventos foram se misturando no tempo e revelando a multiculturalidade que é uma característica singular das sociedades democráticas e também daquela região.
       
       Para refletir sobre a diversidade cultural do Rio Grande de hoje eu sugiro um rápido exercício de ficção e de raciocínio: O que diria el gaucho-argentino José Hernandes sobre os parques eólicos que mudaram a paisagem do Pampa? Como Simões Lopes Neto descreveria os trabalhadores de Pelotas e do Porto de Rio Grande? O ítalo-gaucho Garibaldi utilizaria algum dos navios fabricados nos estaleiros do Pólo Naval? O que escreveria Erico Verissimo sobre a globalização da nossa economia? Chimangos e maragatos comprariam nos freeshops de Rivera?  

      Cada discurso tem que ser confrontado com a prática de quem o fez, para revelar a sua veracidade e a sua consistência. Todas as lembranças históricas são importantes, pois elas fazem parte da simbologia e do inconsciente coletivo de um povo, mas os pensamentos mecanicistas e excludentes, que insistem em se manifestar precisam ser superados, pois eles não reconhecem a complexidade da diversidade cultural existente e confundem o debate sobre a simbologia e os valores com a interpretação dos fatos históricos

       Apenas uma adesão ao campo da práxis (prática histórica e sensível) poderá fazer esse raciocínio avançar. Os clichês, os jargões e as disputas entre a verdade e a não verdade dos fatos acabam sempre reproduzindo a velha ideologia competitiva e “caudilhesca”. Revirar e reconstruir o(s) tempo(s) já vivido(s) pelos nossos antepassados, até chegar ao tempo presente, é um imenso desafio, pois exige conceitos que enxerguem a cultura como um processo vivo, não fragmentado e nem departamentalizado em prazeres meramente acadêmicos e estéticos (preconceituosos). Nesse processo vivo, também é preciso reconhecer a celebrar as liberdades e as façanhas conquistadas pelos antepassados, assim com toda a diversidade política, étnica, econômica, simbólica, tecnológica, artística e cultural que é uma marca deste território estratégico de intensas con-tradições e disputas nacionais/internacionais.  

        Não reconhecer toda a diversidade cultural do Rio Grande é viver preso no discurso acadêmico ou no passado. Somente ao reconhecer suas virtudes, o povo deixará de ser escravo de um tempo que já não existe mais.

P.S. Qual seria o melhor título para esta reflexão? 1) O Tempo e o vento parado no tempo; 2) O Tempo e os diferentes ventos; 3) Todos os ventos num tempo só ou 4) O tempo e os novos ventos.