O remédio e o veneno


“A diferença entre o remédio e o veneno é a dose”
Ditado popular

Estamos vivendo aqueles dias que valem mais do que vinte anos. Uma grande onda de relacionamentos virtuais e presenciais está apaixonando as novas gerações e hipnotizando os mais velhos, ainda perplexos com os recentes acontecimentos no país e no mundo. Vídeos, fotos, notícias e milhares de informações continuarão a ser publicadas diariamente nas redes sociais, na TV e nas rádios, alimentando um dinâmico ambiente de liberdade individual e coletiva.

       A geração dos anos 90, diferente das anteriores, se alimentou de informações e de conhecimentos que acabaram forjando livremente as suas múltiplas opiniões pessoais e políticas. Enquanto isso, os mais velhos ainda curtiam a internet como se ela fosse uma televisão, um jornal e/ou um telefone. Assim, desse jeito meio estranho e desencontrado, foi se criando um silencioso hiato cultural e político entre as gerações. Mas agora, depois que os mais novos revelaram todo o seu aprendizado nas ruas, foi formada uma primeira onda de indignações, de conflitos, e também de conquistas.

       Assim, como num relance, as pessoas foram jogando as suas indignações para o ar e depois, aos poucos, começaram a definir algumas pautas de reivindicações municipais, estaduais e nacional. Ao mesmo tempo, uma ala de fatalistas permanecia de plantão: os partidos estão falidos, dizia um. Todos são manipulados pela grande mídia, publicava outro. Os políticos são todos iguais, compartilhava uma amiga distante. E tudo isso que circulava apenas nas redes sociais, agora invadia as ruas. Assim, meio desajeitada, pela fragilidade das atuais estruturas organizacionais, a sociedade civil começou experimentar a democracia e a separar o joio do trigo. Quem não entender o que está acontecendo, sem dúvida alguma, vai se tornar refém dos atuais e dos futuros acontecimentos. 

      Muito mais do que um debate entre “situação” e “oposição”, já deu para perceber que estamos vivendo um importante momento histórico, simbolizado pela popularização da internet, combinado com uma nova recomposição das classes sociais no Brasil e no mundo. Nesses novos tempos, os velhos discursos que sempre reivindicavam a existência de uma direção "pré-definida" mostraram-se ultrapassados, assim como os discursos daqueles(as) velhos aventureiros que sempre querem ver o “circo” pegar fogo. Ambos concebem a sociedade como um objeto e não como formada por sujeitos reais e autônomos.

    Por isso, além de exigir mudanças profundas dos governos, precisamos trabalhar as mudanças subjetivas em nós mesmos, condenando os saques ocorridos e as depredações dos prédios públicos, por exemplo. Esse tipo de aprendizado político, às vezes, somente acontece na prática, na vivência e nas contradições da vida.

      Estamos vivendo um tempo diferente das experiências anteriores, pois ele exige o reconhecimento dos novos espaços livres, autônomos e participativos criados no território da internet. Somente assim poderemos ampliar o controle social sobre as ações dos governos municipais, estaduais e federal, como também do Congresso e do Supremo Tribunal Federal. Mas começando pelas direções dos nossos condomínios, das nossas associações de bairro, das universidades, das escolas, dos hospitais, dos postos de saúde, das compainhas de transportes urbanos e interurbanos, etc. Ou seja, além de protestar precisamos atuar como “retaguarda crítica” das nossas organizações. Não se trata de esvaziar a luta de rua, mas de reconhecer que os movimentos são cíclicos e que, para se tornarem consequentes, eles exigem momentos de avaliação dos avanços organizativos, dos possíveis recuos e também das novas conquistas.

      No caso do Brasil, estamos conseguindo atravessar a crise do capitalismo mundial através do incentivo ao consumo e da inclusão econômica de milhares e milhares de brasileiros no mercado de trabalho. Com isso foram mantidos os empregos e a estabilidade de muitas famílias, mas deixamos para trás a reflexão mais profunda sobre as estruturas de poder e o controle social da coisa pública e até esvaziamos as nossas entidades representativas. Dependendo dos rumos que esse processo tomar, podemos deixar mais um bom exemplo para o mundo que ainda está em crise profunda.

      Portanto, como foi dito, além de protestar é preciso avançar no controle social da coisa pública, com propósitos e princípios claros, capazes de facilitar a comunicação interna e externa e não destruir o ambiente democrático que levamos anos para construir. Uma construção coletiva desse tipo será sempre complexa e dinâmica, e não possui uma fórmula pronta, nem será implementada de cima para baixo. Tudo dependerá da cultura política que hegemonizar uma rede social orgânica ou dos processos políticos reais que ocorrem num determinado território (município, região, estado ou país), até alcançar o reconhecimento de todo o planeta.

      O Movimento Passe-Livre (MPL), por exemplo, que está organizado em vários estados, acabou conquistando muito mais do que pretendia: contribuiu para baixar o preço da passagem em algumas capitais e cidades de médio porte, abriu a caixa-preta do transporte em São Paulo e se alastrou enquanto organização autônoma e democrática. Assim, saiu fortalecido desse novo processo.

      Os governos seguem escutando, negociando e se boa parte dessa sociedade civil que foi para as ruas conseguir se organizar, poderemos avançar muito mais em importantes questões, como: UM PLANO NACIONAL DE MOBILIDADE URBANA, MAIS INVESTIMENTOS NA ÁREA  DA EDUCAÇÃO E DA SAÚDE, COMBATE À CORRUPÇÃO (que agora será tratada como crime hediondo) e UMA REFORMA POLÍTICA QUE ABSORVA PROPOSTAS DE CONTROLE SOCIAL.

      Outra grande novidade desse processo é que, pela primeira vez na história deste país, os mesmos meios de comunicação que apoiaram as ações violentas da Polícia Militar passaram a incentivar as manifestações de rua numa clara disputa pela hegemonia dos movimentos. A Polícia Militar passou a proteger as sedes das emissoras de TV e os órgãos de comunicação passíveis de ataques, pois a desconfiança sobre eles também ficou evidente. Mas, depois que todas essas notícias se alastraram em tempo real pelas redes sociais, ficou provado que a grande mídia não mais detém o controle total das informações (como anos atrás). Portanto, o nosso desafio passou a ser a escolha das bandeiras políticas (ou vocês acham que alguém é neutro nessa história?).

     Ainda é cedo para qualquer conclusão definitiva. Mas, depois dessa primeira “onda” de protestos no país, já se pode arriscar algumas opiniões. Por exemplo: 

     1º) É possível perceber que as pessoas estão se expondo muito mais do que em dias “normais”: do anarquista ao repressor, do libertário ao conservador, do oportunista ao franciscano, do novo rebelde sem causa ao novo rebelde com causa. Portanto, fica mais fácil identificar as suas contradições internas;

     2º) Ainda não dá para perceber qual é a correlação de forças (culturais, políticas e sociais) que vai ficar como herança desse rico processo. Em Porto Alegre e no RS é possível reconhecer um determinado acúmulo político, mas no estado de São Paulo, é bem diferente. No Rio de janeiro, Pará e em Pernambuco, os ingredientes são outros, e assim sucessivamente... Essa realidade irá definir a composição do Congresso e da chamada "governabilidade";

     3º) Deu para identificar claramente - nas ruas, na TV e na internet – que alguns grupos irresponsáveis queriam apenas ver o país pegar fogo. Mas também foi possível identificar muitas demandas democráticas e justas que surgiram. O desafio será o de organizá-las e potencializá-las ao máximo, até que elas se tornem projetos e programas viáveis;

     4º) O Governo Federal, assim como alguns governos estaduais e municipais já reconheceram a necessidade de mudanças, sendo que o governo do Rio Grande do Sul está (re)criando canais permanentes de participação e controle social, chamando as forças que se manifestaram nas ruas para um diálogo permanente e de construção do futuro.

     Dito isso, fica claro que, além de celebrar as nossas conquistas, é fundamental organizar redes orgânicas e autônomas de relacionamentos, elevar o nível do debate, esclarecer as desinformações e as intrigas que ainda são publicadas nas redes sociais e na grande mídia. Mas, cuidado! Também precisamos combater as manifestações autoritárias e antidemocráticas que aproveitam estes momentos de indignação e rebeldia para semear o ódio. Enfim, precisamos ser criativos. Apenas para evitar que esse maravilhoso remédio se transforme numa overdose de delírios e de lamentações.
Porto Alegre, junho de 2013.

2 comentários:

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